domingo, 8 de julho de 2012

Mystique Résidence - Parte Dois

Sobes a ribanceira e voltas para a estrada. Andas horas a fio. O número de veículos que por ti passaram conta-se pelos dedos. Aquela imagem da velha a gritar “oito” é que não te sai da cabeça. Pensas que estás a pensar demasiado nisso, tentas esquecer, mas o teu cansaço já não te deixa fazer isso. Chegas à conclusão de que o melhor é tentares a tua sorte a apanhar boleia, mas ao mesmo tempo acreditas que isso não te vai levar a lado nenhum, com a quantidade de carros que por ti passaram talvez daqui a três ou quatro dias encontres um que esteja disposto a ter um puto no lugar do morto. Sempre que ouves alguma coisa a vir na tua direcção, esticas o braço esquerdo, às tantas começas a sentir que tens o braço mais comprido, mais esticado. Abanas a cabeça em negação. Nessa altura pára um mini ao teu lado e abre-se a porta do pendura. Entras sem pensar duas vezes, lá dentro está alguém com cabelo comprido que lhe cobre a cara, usa roupas largas, por isso nem dá para perceberes se é homem ou mulher. Podias pensar que se calhar não devias ter aceitado o gentil gesto da pessoa incógnita, mas até estás confortável assim, por isso, não há problema. O veículo desloca-se a uma velocidade baixa, daí não o teres notado próximo se ti, e em três horas, mais coisa menos coisa, chegam a uma cidade que tu nem sabias que existia. À entrada o carro pára e uma voz feminina diz-te para saíres. Fazes o que te manda, afinal de contas o carro não é teu. Assim que sais e te voltas para agradecer a boleia já o carro lá não está, nem há sinal dele em parte alguma. Pões as mãos nos bolsos e andas devagar, a analisar aquela paisagem desconhecida para ti. Notas que a maior parte dos edifícios, embora grandes e imponentes, estão muitíssimo mal tratados e parece que vão ruir a qualquer momento, entre alguns escombros daquilo que parece ter sido uma igreja cristã, encontras uma ficha de inscrição para o que pensas ser uma escola. Agarras e começas a ler.

Mystique Résidence procura pessoas como tu! Se tens esta folha nas tuas mãos é porque ela te pertence, foi o destino que assim o quis, não ignores este sinal. Somos uma comunidade de indivíduos colectivos que se juntam numa sociedade singular em redor de uma característica comum, uma mesa! Preenche com os teus dados se queres que seja adicionada uma cadeira e uma cama para ti! Não percas mais tempo!

Reviras os olhos após ler tal absurdo. Um texto que não te faz o mínimo de sentido, que tenta ser engraçado e apenas se acaba por se enterrar mais. Mesmo assim sentes uma vontade enorme de preencher a folha, só pelo gozo. Procuras na tua mochila por algo com que escrever, encontras uma caneta meio comida, lembraste que é a mesma que utilizavas na Primária. De repente memórias de quando a vida ainda existia, de quando ainda não te tinha acontecido nada que te tornasse na carapaça vazia que és hoje. Lembraste de como adoravas aprender, mas todos os dias voltavas para casa com a sensação de que foras enganado com promessas falsas. Lembras-te de quando conheceste pessoas que, por motivo nenhum, te ficaram queridas de imediato, eram essas as pessoas com quem tu partilhavas a tua sandes, mesmo que soubesses que aquilo era tudo o que tinhas até ao fim do dia. Lembraste de jogar à bola e, fruto de alguns mal-entendidos, andar à porrada com mais de metade dos teus colegas. Cerras o punho como se quisesses eliminar essa última memória, mas é em vão. Escreves, primeiro o teu nome, depois a tua data de nascimento, e não vês mais nada que tenhas que preencher ou assinar, de facto, não notas mais nada senão o texto e essas duas indicações. Amarrotas a folha e joga-la de volta para os escombros, sentes-te como se o teu cérebro tivesse diminuído.

Já o sol se começa a pôr e estás cansado. Cansado não, exausto. Vês algumas casas abandonadas e começas a explorá-las. Acabas por te instalar numa delas, a que tem o aspecto mais cuidado, ou seja, tem um colchão no chão e algumas mantas rasgadas no outro canto da sala. Pegas nas mantas, deitaste no colchão, tapas-te. Sentes-te bastante confortável. Comes o pequeno pacote de bolachas que estava esquecido na tua mochila há anos e bebes a água que te resta, esperas que te deixes dormir depressa, o que acaba por acontecer. Acordas, estás no carro ao lado da senhora misteriosa. Esfregas os olhos com força, podias jurar que já tinhas saído de lá. Ouves novamente a voz feminina, desta vez diz-te que dormiste durante quase catorze horas, que assim que entraste no carro apagaste por completo. O seu tom de voz mostra preocupação pela tua pessoa, e lá no fundo, ficas comovido. Ao passar por uma estação de serviço o automóvel é estacionado e a condutora abandona o veículo. Reparas em algo estranho, nas suas calças está um enorme alto, algo quase desumano, quando olhas para o tronco reparas que o mesmo acontece, mas em vez de um existem dois altos, lado a lado. Estás confuso, afinal tens estado a viajar, pior, a dormir ao lado de quê? Abres a mochila para beber água, mas já não tens a garrafa. Procuras pelo pacote de bolachas, também já não existe! Estás a dar em maluco. Começas a pensar que, às tantas, nem saíste do teu quarto e estás apenas deitado na tua cama a ter mais uma crise de identidade, daquelas que tens de vez em quando, em que o suicídio te parece ser a opção mais viável, pois estás convencido de que não farias falta a ninguém, daquelas crises de que ouves toda a gente queixar-se mas que pensas para ti mesmo “vocês sabem lá o que é uma crise. Sabem lá o que é ter de conseguir angariar forças suficientes para enfrentar mais um dia na vossa companhia? Na vossa terrível e totalmente dispensável companhia? Tenham paciência.”. A tua linha de pensamento é quebrada por uma forte cacetada no capô do carro. Depois mais pancadas se seguem, em diversos locais da lata em que estás dentro. Consegues ver algumas criaturas pelo vidro, são criaturas sem cara, têm apenas um braço enorme, os pés trocados, tortos e inchados e o maxilar aberto ao meio, alguns até o têm dividido. Tentas não entrar em pânico e jogas as mãos aos controlos do carro tentando lembrar-te de como era que o teu pai fazia. Sorte a tua que segundos depois vem a mulher-homem e em três tempos já deixaram as criaturas para trás.

“Não há tempo para explicar! Desculpa, mas quanto menos souberes melhor.” Diz ela a tentar recuperar o ar. Parece que correu uma maratona em tempo recorde, notas também que tem os braços mais grossos e pela primeira vez consegues ver o seu rosto de relance. É quadrado, quase geometricamente perfeito. Tem alguns pelos faciais, mas não o suficiente para se dizer que tem barba ou bigode. Olhas para a frente e apercebeste de que a velocidade a que viajas é estonteante. Começas a querer gritar. Estás já tão afundado no banco que mal te consegues mexer e respirar. Os teus ouvidos estalam. Os teus olhos saem das suas órbitas, o direito até chega a ser totalmente projectado da tua cara assim que o mini embate contra uma parede. O teu corpo embate contra o cinto de segurança, quebrando todas as tuas costelas sem excepção, estas perfuram todos os teus órgãos interiores. Começas primeiro por sentir os pulmões afectados, e, em menos de nada, estás já a afogar-te no teu próprio sangue. É estranho sentires o gosto metálico de que outrora tanto gostaste mas que desta vez preferias não sentir. Sentes algo de estranho dentro de ti, dentro do teu peito. Sentes como se algo te estivesse a arranhar o teu coração, literalmente, apercebeste disto e esforças-te ao máximo para encheres o peito de ar, gritar e mexer-te. As tuas acções são em vão, apenas te faz sofrer mais. Olhas para a esquerda na esperança de veres como está a pessoa que vinha a conduzir. A muito custo olhas na sua direcção e preferes não o ter feito. Ao teu lado está uma das criaturas sem cara, mas desta vez com dentes serrilhados que depressa te morde o nariz e to arranca. É te cuspido de volta, antes de fechares os olhos para o sono eterno ouves esta criatura gritar “nove”.

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