terça-feira, 3 de julho de 2012

Mystique Résidence - Parte Um

Tens 16 anos. A localidade onde tens vivido desde sempre, maltrata-te de todas as maneiras possíveis e inimagináveis, estás por tudo para sair daí. A tua família é uma merda. Os teus amigos eram uma merda, e agora, estás sozinho, e sentes-te como merda na mesma. Resumindo, a tua vida é, toda ela, uma merda. Decidiste o correto ao dares este passo, o passo para fora daquilo de que todos te querem convencer ser um lar, uma casa onde tens carinho, amor e afeto. Estás totalmente confiante de que daqui em diante vais ser tu e só tu na tua vida, mas nada que te faça tremer as pernas, estupidamente, sentes-te mais acompanhado agora do que alguma vez te sentiste em qualquer momento na tua vida. Sentes que até a tua sombra está contigo, que desta vez és um todo; o teu corpo, a tua mente, o teu coração, a tua sombra e a tua essência são, desta vez, os componentes que constroem o teu “eu” interior.

O sítio onde vives é pequeno e calmo, principalmente à noite, sabes que muito dificilmente passará algum carro por ti. E começas a andar, sem rumo, com a tua mochila cor-de-laranja fluorescente. Para trás ficou a única coisa que te fazia permanecer aqui, a tua cama. A tua melhor amiga em todas as alturas, sempre esteve lá para ouvir as tuas lamúrias, sempre te permitiu que a abraçasses, nunca te afastou por algo que disseste ou fizeste, guardou todos os teus segredos, dos mais importantes aos sem qualquer tipo de significado, aqueles que querias que fossem mesmo segredo, que não querias que ninguém soubesse deles, e os outros que na realidade apenas os querias gritar aos ventos e aos mares. Hesitas, olhas para trás e espremes os olhos de modo a fazer escorrer a lágrima que já te começava a incomodar. “Esta é para ti amiga”, pensas. Não ousas abrir a boca, muito menos proferir som. Cansaste-te da tua voz há já muito tempo para sequer te lembrares. Outra das coisas que te cansaste foi do aparelho que muitos consideram totalmente indispensável nos dias de hoje, telemóvel. Atiraste-o para dentro do rio que passa poucos metros atrás da tua casa, é dos melhores arremessos que já alguma vez fizeste, e das ações que mais te orgulhas. Esboças um pequeno sorriso, olhas para os teus pés e pensas que estás mais parecido com alguém que veio de uma rave, ou então algum ladrão de segunda categoria, totalmente vestido de negro. Na verdade são apenas as roupas mais confortáveis que tens, acontece que são escuras, uma blusa de gola alta azul-escura, umas calças pretas, largas e repletas de bolsos, bastante uteis nesta situação, umas sapatilhas/botas, o único presente que alguma vez gostaste de ter recebido. Normalmente aniversários não existiam para ti naquela casa, os teus presentes resumiam-se a dirigirem-te a palavra para que lavasses a casa, ou para que levasses todos os cães do canil para passear, a única coisa que vias de positivo é que era sempre um dia em que a escola ficava para segundo plano.

Jogas a mão à mochila, alarmado, mas encontras tudo aquilo que necessitas. Ainda pensaste em agarrar no computador, mas chegaste à conclusão de que a única coisa para que ele te servia era para ter algum prazer fútil enquanto jogavas a qualquer jogo pouco desafiante, e mais recentemente já nem isso te era prazeroso, deixando-o em casa ainda pode ser de alguma utilidade para a tua família, embora sejam uns falsos de meia tigela precisam mais de um computador do que tu, e nem te custa muito isso, é menos peso para ti. Olhas para cima e vês que a lua se esconde de ti, lembraste de um conto que ouviste uma vez, que sempre que a lua se esconde de quem a procura significa que esse alguém terá um destino negro. Nunca foste supersticioso, portanto não vês razões para o seres agora. Respiras fundo até te doer os pulmões e começas finalmente a dar passos em frente. Não sabes para onde vais, mas sabes que é aquilo que queres e que tens tudo aquilo que precisas, roupa para te aqueceres e vontade de viver. Assim que deixas de ver luzes a iluminar a estrada pensas que talvez as coisas sejam um pouco mais complicadas do que pensavas que seriam ao início, mas não é isso que te demove, o que te demove é a falta de confiança, não que tenhas medo do que reside no escuro, mas do medo do que te podes tornar no escuro. Lembraste de algumas cosias que aconteceram em certas noites e chocalhas a cabeça para terminar essas ideias negrumosas. Desces a pequena ribanceira em que fica a estrada e encostaste a ela quando não podes descer mais, pensas que se passares aí a noite nada te acontecerá, adormeces pouco depois.

Acordas sobressaltado com uma trovoada ao longe. Adoras trovoada, principalmente de noite. Ver o céu iluminar-se por instantes, contar os segundos que se encontram entre a receção da luz e do som. Costumava ser um dos teus passatempos favoritos no Inverno, quando chovia, fechavas-te no quarto, deitavas-te na cama e tapavas-te com tantos cobertores quantos tinhas, a janela deixavas aberta para ouvires os rugidos da natureza e sentires a água na cara. Odeias chuva. Achas que, se existe algo mais, a chuva é a maneira que tem de se divertir connosco e ao mesmo tempo de mostrar quem manda, acha-la suja e repugnante, e sempre que te molhas com ela parece que o teu corpo pesa mais setecentas e cinquenta e cinco toneladas, e que não és mais digno de viver. Neste momento é Primavera, portanto essas memórias de Inverno não te fazem sentir nada. Perdeste-te na contagem, já não sabes quantos segundos vão desde que viste tudo à tua volta clarear, de repente, vês tudo mais claro que aquilo de que gostarias e sem te aperceberes apenas ouves um zumbido agudo e irritante. Estás desorientado, já não sabes de que lado vieste nem que caminho estavas a seguir, levantaste a muito custo, sentes as pernas dormentes e estás com tonturas, tentas correr com todas as forças que tens, mas o chão é irregular, tropeças e voltas a tropeçar, chega a uma altura em que já não pousas os pés em condições, só queres que isto tudo acabe, e acaba. Cais mesmo com o queixo numa rocha pontiaguda que parecia estar à tua espera. Como se já não bastasse as tonturas, os zumbidos nos ouvidos, a falta de força no corpo e as dores nos tornozelos, tens agora também o teu maxilar a dar-te a maior das dores da tua vida, sentes o sangue a escorrer como se fosse chuva, odeias esta sensação. Tentas cerrar os dentes para aliviar a dor, mas sem sucesso, o pouco que mexes a parte inferior da tua boca só te faz sentir pior, jogas a mão direita ao queixo para tentares perceber em que estado estás. Não sentes pele. Não sentes carne. Sentes sangue, líquido, a escorrer com tanta pressão que pensas já ter perdido mais de metade daquele que tens no corpo. E por fim, sentes osso. Estilhaçado. Rachaduras e fracturas e todas as “uras” que agora não te lembras. Tentas levantar-te na esperança de ainda te conseguires salvar se voltasses para trás, sabes de uma velhota que dizem curar os piores males, mas, como toda a gente na terra de onde és natural, o mais provável seria fechar-te a porta na cara e deixar-te a morrer no poial.  Nisto reparas que o teu braço esquerdo ficou lá atrás, deslocaste o braço de tal maneira que pareces o Homem-Elástico. Não tens salvação. Querias sair de casa, daquelas quatro paredes horríveis e tenebrosas. Querias fugir da tua vida, que nem isso a consideravas, quando na realidade querias fugir de ti apenas, única e exclusivamente de ti, não conseguiste. Vais acabar por morrer daqui a algumas horas no máximo. “Ao menos que não demore muito. Quanto mais rápido melhor”, pensas, desesperado, inútil. A sorte está do teu lado e sentes um calor enorme a trespassar todo o teu corpo, primeiro nas costas, depois estende-se a partir daí. O clarão que o acompanha nem o vês, a única coisa de que distingues é a tal velhota em quem pensaste há pouco. Ela chega perto de ti, agacha-se, e pela primeira vez reparas bem na sua face, feia, velha, seca, cheia de crateras. Tem os olhos cinzentos. Não te fala, apenas fica ali, a olhar-te durante o que te parece ser minutos. Depois grita “Oito!”

Acordas. Estás exatamente na mesma posição em que te encontravas quando te encostaste pela primeira vez à ribanceira. Tens um pardal a bicar as tuas botas. O céu está azul e pela posição do sol devem ser nove e pouco da manhã. Abres a mochila, tiras uma sandes, dás uma dentada. Mastigas com tempo, a apreciar o prazer de comer, algo que sempre te incomodou foi a ideia de que como é possível algo tão banal e necessário ser uma das coisas mais maravilhosas no mundo e na vida. Partilhas um pouco do teu pão com o pardal.

- Oito?

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